O Futebol tem expressões próprias.
Ponta, ala, volante, zagueiro, atacante, meia. Meia?
Meia, hoje, só se for para usar no pé!
No meu tempo havia meias. Meia-direita e meia-esquerda. Um jogador, entre os cinco da linha, não importa se fosse o meia-direita ou o meia-esquerda, era o meia ponta de lança, o homem que fazia o papel de companheiro do centro-avante, o homem que vinha de trás para ajudar o centro-avante entrando na área e o outro jogador dentre os cinco avançados era o meia-armador,o pensador do time, o cérebro, o armador das jogadas, o homem a quem se atribuía a missão de municiar os demais atacantes.
Normalmente os meias-armadores eram os camisas 10 dos times, exceção feita a Pelé que imortalizou a 10 como ponta de lança no Santos FC. Ademir da Guia era meia armador e usava a camisa 10 do Palmeiras, Dirceu Lopes era armador e usava a10 do Cruzeiro, Rivellino era o meia armador do Corinthians e envergava a 10. Ser meia armador e vestir camisa 10 era ser o maior jogador do elenco de um clube. De qualquer elenco, bom ou ruim.
Às vezes o meia armador ocupava o lado direito da intermediária para a frente em sua equipe, às vezes ocupava o lado esquerdo. Quase todos os meias armadores da minha época eram craques, de tirar o chapéu. Vou logo ao assunto, meus iguais. Eu quero falar sobre o maior meia-armador que vi jogar.
Gerson de Oliveira Nunes nasceu em Niterói-RJ, em 11/01/41. Apareceu no futebol muito jovem, jogando pelo Flamengo e transferiu-se mais tarde para o Botafogo onde fez história. Nos tempos da minha infância e parte de minha mocidade, anos de pedra da construção de nosso templo, o Morumbi, eu vivia fascinado pela arte e pela classe que tinham os nossos grandes meias armadores.
Um dos maiores prazeres da minha vida de torcedor de futebol foi ver Gerson jogar, ele foi o paradigma dos meias armadores. No final do ano de 1969, quando eu ouvi pelo Rádio, que Gerson estava contratado pelo São Paulo, não acreditei.
Cr$ 900.000, (novecentos mil cruzeiros) foi o preço astronômico que o São Paulo pagou para trazer Gerson, Gerson era um fora de série, era um monstro, ter Gerson no São Paulo parecia mentira. Em 1968 o Botafogo ganhara seu mais brilhante título carioca, era um time de astros, tinha Jairzinho, tinha Paulo Cezar, tinha Manga, tinha Roberto, mas a sua maior estrela era Gerson.
Gerson estava no apogeu da carreira. Depois do fracasso da Copa de 1966, o meia botafoguense estava enchendo as medidas. Gerson se transformara na maior personalidade do ambiente futebolístico carioca. Às vésperas da Copa do Mundo de 1970 e depois de assistirmos a um show de Gerson no campeonato do Rio de Janeiro, eis que o São Paulo anuncia que o contratara, o São Paulo contratara nada mais nada menos do que Gerson, o “canhotinha de ouro”!
Eu, e tantos outros são-paulinos, ficamos atônitos. Acabaria o nosso sofrimento de 13 anos? Teria, enfim, cessado a política do sovinismo em prol da construção do patrimônio?
Sim, teria. Laudo abrira a carteira!
A chegada de Gerson foi memorável, foi algo indizível, o São Paulo tem dessas coisas, o São Paulo faz o destino!
Quando Gerson chegou ao Morumbi tínhamos um elenco cabisbaixo desde 1957, era um elenco acostumado a participar apenas. Gerson mudou a cara do São Paulo. Logo na apresentação, o gênio, perguntado a que viera, disse que vinha antes de ser tri-campeão do mundo pela seleção brasileira e para resgatar a saga de glórias do São Paulo FC. Gerson, diante de um batalhão de repórteres, afirmou com toda a convicção:- “Vim para ganhar todos os títulos que disputar!”
Gerson representou para o São Paulo, nos anos 70, o que representaram Leônidas e Sastre nos anos 40, Gerson devolveu ao São Paulo a auto-estima perdida, Gerson, desde que chegou ao São Paulo, virou o dono do Morumbi.
Vi todas as partidas de Gerson pelo São Paulo. Sério, meus iguais, vi todas. Gerson hoje é uma lenda, é um mito na história do São Paulo. Mas eu não falo do mito, não me refiro à lenda; os prodígios dos mitos e das lendas quase sempre são exageros da imaginação de quem não os viu.
Eu vi, com meus olhos que a terra haverá de consumir, Gerson transformar o São Paulo no início dos 70, em um esquadrão igual ao dos anos 40!
Ah, meus iguais, que carisma tinha o Gerson, como jogava o Gerson!
Fui à estréia dele no Morumbi, em setembro de 1969, ele nem havia treinado direito e o São Paulo perdeu por 5×2 do Atlético Mineiro. Os dois gols do São Paulo foram dele, claro.
Tanto bastou para a mídia urubuzar a contratação, Gerson sozinho nada significava. E mais: ele só jogava no Rio, disseram os bairristas e anti-são-paulinos. Já viram, iguais, como há anti-são-paulinos? Sempre foi assim.
Então, Gerson, com a sua personalidade única e com o seu futebol deslumbrante, devolveu ao São Paulo a sua identidade vencedora. Ele disse:- “Vou ganhar a copa e volto para fazer o São Paulo campeão”!
Gerson, naquela ocasião, já jogador do São Paulo FC, foi para a Copa do Mundo de 70, a mais emblemática das Copas, para comandar o time brasileiro no México. Nem Pelé, o extra-terrestre, foi maior do que Gerson na Copa de 70. Os velhos são-paulinos, vendo o show de Gerson naquela Copa, voltaram a achar que podiam legar aos seus sucessores as tradições do “Clube da Fé”, os moços recobraram os ânimos, os indecisos decidiram optar pela camisa das três cores.
A campanha do São Paulo em1970 foi maravilhosa. Depois de 13 anos, finalmente mais um título paulista! Gerson, voltando consagrado da Copa, só não fez chover. Dava gosto vê-lo em ação. Gerson era um homem de pequena estatura, não entrava na área do adversário, o domínio de Gerson era delimitado entre a intermediária do seu time e a intermediária defensiva do seu adversário.
O território de Gerson estendia-se, desde a saída de sua grande área, até a entrada da grande área do inimigo. Nesse espaço, Gerson tinha domínio completo, absoluto. Essa região do campo de jogo tinha um comandante: Gerson, o “canhotinha de ouro”.
Ele já era chamado de “canhotinha de ouro” quando veio para o São Paulo. Gerson veio ao São Paulo aos 29 anos, naquele tempo, aos 29 anos, um esportista já estava no ocaso da carreira. Desde que começou a jogar, ainda menino, Gerson não tocava na bola com o pé direito.
Quando se apresentava no jogo uma ocasião em que ele tinha que chutar com o pé direito, Gerson fazia algo jamais visto. Ele girava, como um pião, com a bola para trás, até levá-la ao pé esquerdo e já com a ferramenta ideal dava um lançamento de 40, 50 metros.
Gerson não cabeceava uma bola. Nunca vi o Gerson cabecear uma bola. “Bola foi feita para chutar”, disse ele um dia, em uma entrevista.
Gerson batia faltas e pênaltis, como ninguém. Imaginem Didi, o “folha seca”, imaginem Rogério Ceni; era mais ou menos assim que Gerson cobrava faltas e pênaltis.
No início dos anos 70, Gerson comandava o São Paulo FC. Eu ia ao estádio para ver Gerson, imagino que muitos iguais me imitavam. Mais que ir aos estádios, eu ia aos treinos no Morumbi, para ver Gerson!
Gerson era um matemático da bola, um jogador preciso. Ele não errava um passe. Gerson era uma extensão do curso da bola, ele tinha o poder de fazer o jogo fluir. Nunca vi o Gerson errar um passe. Com aquela postura dele, parecia um corcunda, ele protagonizava uma performance inédita, punha dona bola onde queria. Dona bola o amava, tenho certeza. Parecia tão leve aos pés dele! Gerson era o carteiro da bola, o seu pé esquerdo selava o destino da pelota, ele era certeiro, infalível!
Às vezes Gerson saia costurando pela intermediária adversária até chegar próximo da área. Dalí desferia uma bomba e estufava a rede. Foi assim na Capa de 1970, no jogo decisivo contra a Itália, lembram-se? Esse gol foi fundamental para a vitória, foi o gol da virada para 2 x 1, o Brasil saíra perdendo por 1 x 0.
Nos anos 70 eu estava cursando a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, estava apaixonado pelas Arcadas, mas o São Paulo sob o comando de Gerson, com perspectivavas de vencer alguma coisa, me deixava louco. Então eu ia até aos treinos no Morumbi!
Lá, eu e tantos outros apaixonados, sentíamos a liderança desse craque, desse Napoleão, que comandava o time, dentro e fora do campo. Era uma liderança que impressionava!
Gerson tinha um Camaro. O Camaro era o carro mais caro da época. Era um Camaro preto. Na frente do Morumbi, Gerson, encostado à porta de seu Camaro, concedia entrevistas para a imprensa e depois ficava a conversar com os torcedores.
Ali se falava de tudo, ali se resolvia tudo. Bons tempos. Gerson anunciava até a escalação do time!
Para se ter uma idéia, meus iguais, de quem tenha sido Gerson para o São Paulo, e para o Brasil nos anos 70, lembro que todos os maravilhosos meias da época se curvaram à majestade de nosso “canhotinha de ouro”. Na disputa entre ele, Ademir da Guia, Dirceu Lopes e Rivellino quem ganhou? Ele!
Quem foi o cérebro do Brasil na Copa de 1970? Dirceu e Ademir não pagaram placê, Rivellino foi para a ponta-esquerda e o meia-armador da copa das copas, foi Gerson. Pedro Rocha, “El Verdugo”, o 10 da seleção uruguaia, quando chegou ao São Paulo, em 1971, teve que vestir a 8, curvou-se, a 10 era do “canhotinha de ouro”!
Mais: Para que se observe a importância do são-paulino Gerson, naquele antológico 4º gol do Brasil contra a Itália na sempre lembrada Copa de1970, vê-se Pelé, bem ao lado direito do ataque quando serve Carlos Alberto que desfere um tiro letal sepultando o goleiro adversário. Pelé estava ocupando o lado direito do ataque brasileiro. Foi por esse lado que Pelé jogou a Copa inteira de 70. É que do lado esquerdo, posição original de Pelé, flutuava o “canhotinha de ouro”, naquele lado nem Pelé podia com Gerson…
Foi lindo ver Gerson chegar a São Paulo e resgatar os nossos sonhos tricolores, foi edificante ver o nosso herói, de muletas, invadir o “Brinco de Ouro” para comemorar o título de nosso ressurgimento em 70, Gerson havia quebrado a perna na penúltima batalha do título que ganháramos sob sua batuta, com sua raça e com sua classe inigualáveis.
Foi maravilhoso ver Gerson desbancar o “divino” e arrebentar o “garoto do Parque” enquanto esteve em São Paulo, foi impressionante ver Gerson se tornar, por dois anos, o dono do Morumbi, foi gratificante ver o “papagaio” chapelar a imprensa, enlevar a torcida e empolgar o futebol paulista!
Foi em São Paulo que Gerson virou comentarista esportivo. Toda São Paulo o admirava, aqui ele virou um bandeirante, um herói, a cidade de São Paulo aprendeu a amá-lo, ele se tornou um deus, acima de todas as paixões clubísticas.
Hoje, Gerson é comentarista da Rádio Globo. Logo pela manhã, sintonizado na Globo, ouvi, um dia desses, Gerson fazer uma declaração de amor pelo São Paulo FC, já ouvira dele manifestações no mesmo sentido. Ele ama o Bem Amado, assim como nós.
Gerson jogou dois anos no São Paulo FC. Só que, pelas circunstâncias, foram dois anos que valeram por mil!
Meias. Ah! Onde estão os meias? Meias armadores, meias pontas de lança…
Eu quero um meia armador!
Deus nos tem privilegiado com meias armadores dessa categoria ao longo da história. Tempo vai, tempo vem e aparece um, depois aparece outro e outro… São gênios! De Sastre a mestre Ziza, de mestre Ziza a Gerson.
Na história dos meias armadores são-paulinos, eu diria que Gerson foi o maior. Sastre era igual a Gerson mas chegou para comandar uma sinfônica em um time já montado que já tinha Ruy, Bauer, Noronha, Remo e Leônidas,
Zizinho era igual a Gerson e chegou para comandar uma escola de samba em um time quase pronto, que já tinha Mauro, Dino Sani, Maurinho e Canhoteiro e Gerson, nosso personagem, chegou para comandar um exército num time despersonalizado e a ser desenhado e que ainda não tinha ninguém, além do imortal Roberto Dias, em fim de carreira.
Ave, Gerson, nosso inesquecivel meia armador, nosso “canhotinha de ouro”!
Paz, meus iguais.
Antonio Carlos Sandoval Catta-Preta é advogado e são-paulino.
antoniocattapreta@yahoo.com.br
catta_preta on twitter
Sem comentários:
Enviar um comentário