Raí, o Terror do Morumbi.
Raí Souza Vieira de Oliveira
nasceu em Ribeirão Preto, assim como eu. Raí nasceu aos 15/05/65, eu nasci na
década anterior.
O São Paulo quis muito
contratar o irmão mais velho de Raí, Sócrates, mas, quiseram os fados e a
pasmaceira de alguns dirigentes do São Paulo nos anos 70, que Sócrates fosse
para o Corinthians e Sócrates marcou época no arqui-rival são-paulino.
Sócrates surgiu no Botafogo
de Ribeirão Preto, era alto, esguio, magro, tinha habilidade e classe, parecia
para os Oliveira que Sócrates, depois de uma performance brilhante na história
do Futebol e na antologia das genialidades, encerraria o ciclo do estrelato na
família . Uma família só tem um gênio, nunca se viu dois gênios surgirem na
mesma família. Eu nunca havia visto gênio filho de gênio, irmão de gênio igual
a irmão gênio.
Nunca vira, mas vi! A família Oliveira era
pródiga e inédita!
Estou para ver outra vez...
Na esteira do grande
Sócrates, no calcanhar do irmão, vinha um menino educado, atlético, determinado,
galã, que seria a reedição do mano mais velho, reedição melhorada, se é que se
podia melhorar aquele parâmetro extraordinário de excelência.
Se Sócrates era boêmio, não
usava o preparo físico, usava o calcanhar, se era frio, se pouco comemorava os
gols que fazia, se jogava no Corinthians enquanto o coração era santista, Raí
apareceu para jogar no Botafogo anunciando que era são-paulino, era todo
atleta, se preparava, tinha um perfil absolutamente contrário.
O São Paulo, depois de
perder Sócrates iniciando a carreira de astro, por inabilidade, não podia
perder Raí. E não o perdeu. Custasse o que custasse, aquele menino, irmão do
sol, quando apareceu brilhando em Ribeirão Preto fazendo gols, iria ser nosso!
O São Paulo apostou em Raí.
Ele era uma criança, ingênuo, um jogador pesado, alto, meio desengonçado, mas
fazia gols e era irmão do Sócrates!
A aposta, no começo, parecia
perdida. A Raí, o grandão, faltava habilidade, irmão de craque era perneta,
diziam as más línguas!
A torcida do Corinthians
duvidava, o mundo duvidava. Poderia aquele menino, irmão do Sócrates, virar
alguma coisa?
Contar-lhes-ei, iguais.
Raí fora emprestado pelo
Botafogo, de Ribeirão Preto, à Ponte Preta. No Botafogo fizera gols, parecia
impetuoso, na Ponte então, desandou a marcar, chamou a atenção. Então o São
Paulo, como gato escaldado com medo de água fria, por causa da sempre lembrada
perda de Sócrates, foi atrás dele e o trouxe para o Morumbi. Deixar Raí ir para
o Corinthians, como o célebre irmão, seria o fim.
Se querem que eu revele a
verdade, dir-lhes-ei que nem mesmo eu acreditei em Raí quando ele chegou.
Ombrear-se a Sócrates?
A voz do povo é implacável,
ombrear-se a Sócrates nunca, Raí era uma farsa!
Então, o menino foi se
adaptando.
No princípio colocaram Raí
para jogar como centro-avante. Alto, vigoroso, deveria afrontar os zagueiros,
iria chocar-se com eles.
A estréia de Raí foi no
Olímpico, em Porto Alegre, em outubro de 1987, contra o Grêmio, o São Paulo foi
derrotado por 1 x 0.
Cilinho era o técnico do
Mais Querido, Cilinho, esse feiticeiro da bola, viu no menino qualidades,
apesar da derrota.
Fui ver Raí no Morumbi, pela
primeira vez, contra o Santos, em clássico pelo campeonato Brasileiro de 1987,
um jogo depois da estréia.
O São Paulo ainda tinha
Silas, Muller, Pita, o time era hábil na frente.
Raí, meio tímido e sem
ginga, tinha consciência, não errava passes, embora de costas para o gol, me
chamou a atenção. O São Paulo venceu por 3 x 1 e pensei comigo mesmo, será esse
menino um predestinado como o irmão?
Era.
Raí era mais do que um
predestinado, Raí nascera para brilhar intensamente, era uma personalidade do
mundo da bola, era um gênio, era um craque inesquecível que desabrochava!
Em seu segundo jogo no
Morumbi, contra o Goiás, na semana seguinte, Raí faria seu 1º gol e nunca mais
deixaria de cintilar.
Raí caiu rapidamente nas
graças da torcida Tricolor.
Tinha porte, era alto,
decidido, Raí ia na bola com força, com raça, dividia todos os lances, parecia
um anjo da guarda da camisa das três cores. A torcida logo se apaixonou por
ele.
Claro, houve aqueles que
disseram que o menino destoava dos “Menudos”, já em sua última fase; os
“Menudos”, nome dado ao time são-paulino da metade dos anos 80, os “Menudos”
eram muito ágeis e velozes, Raí era mais lento, mais cerebral.
Mas seria o fim da era dos
“Menudos” e o começo da era Raí.
Quando o sonho dos “Menudos”
acabou, começou o império de Raí; Raí aos poucos foi se transformando no
símbolo do São Paulo, o porte de Raí anunciava por si só uma era de conquistas,
aquele jogador, com a sua postura ímpar, insinuava que o São Paulo ganharia o mundo!
Raí era articulado, educado,
fino, um gentleman. Raí era um esportista. Entrevistar Raí, para a imprensa era
uma dádiva.
Ele, perdendo ou ganhando,
se mostrava um cavalheiro, ele foi, a pouco e pouco, se transformando na maior
referência do futebol brasileiro, aquele nobre jogador parecia que jogava de
smoking!
Raí foi crescendo, foi se
transformando num gigante. Ao contrário do irmão, Sócrates, o anti-atleta, a
quem a bola amava de paixão, Raí foi dando exemplos de dedicação, de entrega à
profissão, de sacerdócio em nome da bola. Sócrates era o boêmio, o poeta, Raí
era o devotado, o cumpridor.
Claro, dona bola, que não
resistira ao boêmio, também não resistiu ao devoto. A bola é mulher. As mulheres
amam tanto os poetas e os boêmios loucos quanto os dedicados fiéis e os
disciplinados amantes.
Raí fez da profissão de
atleta devoção. Então, Raí e a bola, selaram uma união que a história marcou e
que muitos vão recontar, ao longo dos séculos.
Raí oscilou, foi para a
reserva entre 1987 e 1988, em 1989 ora era atacante, ora era meia, mas todos
confiavam nele. Raí encarnava, com sobriedade, o jeito do São Paulo…
Foi nos anos 90 que a bola
rendeu-se de uma vez por todas.
Apaixonada pela dedicação de
Raí a bola se entregou a ele e ele se tornou de vez a referência do São Paulo
moderno.
Se Leônidas nos transformou,
nos anos 40, num time grande e se o Morumbi nos deu a afirmação como patrimônio
para que nos mantivéssemos vivos, Raí nos deu o perfil dos torcedores que somos
nos dias que correm; elegantes, vencedores, inteligentes, sóbrios,
diferenciados.
Raí foi a personificação do
cavalheirismo. Não vi em campo ninguém mais elegante, ninguém mais educado,
ninguém mais sereno.
Naqueles anos 90, quando
tive a oportunidade de ser advogado de um jogador do São Paulo, talvez o
primeiro advogado de um jogador de futebol para tratar de seus assuntos com o
clube, senti a influência que, nos demais do elenco são-paulino, exercia a
multifária personalidade de Raí.
Raí era o paradigma, Raí era
o líder, Raí era o elo entre o técnico e o elenco, entre a diretoria e os
atletas.
E Raí amadureceu como
jogador. Se o irmão, Sócrates, havia sido gênio, Raí foi melhor! Raí não foi
gênio, mas para o futebol, Raí foi melhor do que ter sido gênio!
Raí operou prodígios com a
sacrossanta camisa das três cores!
Raí foi um colecionador de
títulos: 89, 91, 92, 98 e 2000 foi Campeão Paulista. Em 91 foi Campeão
Brasileiro.
Em 1992/93 foi Bi-Campeão da
América e foi Campeão do Mundo pelo São Paulo, em 92!
Nenhum são-paulino poderá se
esquecer de Raí; Raí é uma lenda, seu nome correrá, de pai para filho, até o
fim dos tempos.
Eu estava no Morumbi em
certo dia santo, em determinada tarde perdida nas brumas do tempo, num
“Majestoso” poético de 1991, eu e mais 100.000 pessoas, quando Raí estremeceu o
Morumbi, fazendo 3 gols no Corinthians do atônito goleiro Ronaldo,
proporcionando às hostes tricolores uma das maiores vitórias contra o rival,
uma vitória clássica, um show que a nossa memória registrará para todo o
sempre.
Eu vi Raí comandar o São
Paulo em campo, eu vi o jeito de Raí, Raí foi a cara do São Paulo que no início
dos anos 90 foi transformado em frenesi pelo povo, eu vi Raí fazer o São Paulo
popularizar-se. Os meninos, as meninas, as moças e os moços, todos se fizeram
são-paulinos na década de 90, acima de tudo, por causa de Raí.
Eu vi o São Paulo fazer o
Palmeiras cair de quatro, à mercê de Raí, vi o Santos naufragar de 6, sob a
batuta de Raí, vi o São Paulo, pela primeira vez, conquistar a Libertadores com
música no ar e o maestro da sinfonia da bola era Raí, já fixado como ponta de
lança, vindo de trás com o ímpeto de um corcel bravio, com a força
incontrolável de um trator. Raí chutava de longe, não temia chutar a gol,
cabeceava muito bem, era alto, aparecia de surpresa na área e subia com vontade
e estilo. O craque fez muitos gols de cabeça e inúmeros gols arremessando a
bola de longe, como se fosse uma flecha certeira. Raí cobrava pênaltis e
faltas, era completo, não? Foram duas Libertadores,
sob a mística dos pés de Raí, e foram dois mundiais, sim dois MUNDIAIS,
1992/93, que Raí, com sua personalidade e com a exuberância de seu futebol nos
deu!
No inédito Mundial de 1992,
contra o Barcelona, no Estádio Nacional de Tóquio, Raí tornou-se o maior
jogador de futebol do mundo.
O São Paulo enfrentou o
fantasma europeu, o Barcelona, como sempre, o Barcelona parecia imbatível.
Raí comandou o São Paulo,
que venceu de virada o invencível Barcelona, com personalidade única.
Raí, depois de liderar o
time em campo com jeito de imperador, depois de dar show o tempo todo, com
passes perfeitos e frieza incomodativa, empatou o jogo com um gol de peito, com
um gol de coração, mergulhando na pequena área, como se estivesse numa piscina.
E a poucos minutos do fim, cobrando falta, Raí deu um beijo na bola, colocou a
bola no ângulo de Zubizarreta, o goleiro de nome longo, que viu a bola de
longe, que flerta e tem pesadelos com aquela bola, até hoje...
Em 1993, de novo Raí deixou
o Brasil aturdido. Comandou o São Paulo levando o Tricolor ao bi-campeonato da
América, fazendo tremer os adversários caseiros e multiplicando nossa torcida
por três.
O São Paulo já não era mais
de Leônidas, de Sastre, de Bauer, de Dias, de Gerson, de Pedro Rocha, o São
Paulo era também de Raí e a torcida reverenciava o ídolo, sentenciando a
escolha do ídolo maior em coro, com um cântico que soava altissonante nas
arquibancadas: “Raí, Raí, o terror do Morumbi”!
O que ganhara o gênio
Sócrates, o irmão de Raí? Um mero campeonato paulista. Raí, no entanto, ganhava
tudo; Sócrates, diante da história, passou a ser só o irmão de Raí. O São Paulo
de Raí popularizava-se, renascia.
Não vou entrar em minúcias
quanto a Copas do Mundo. Ambos, Sócrates e Raí, jogaram também Copas do Mundo,
claro. Jogador histórico é o que disputa Copa do Mundo.
Em meados de 1993, depois de
conquistar a América pela segunda vez, Raí foi embora. Despediu-se no templo
sagrado do Morumbi com uma atuação de gala, numa noite de magia em que o São
Paulo, pelo Campeonato Paulista, fez deliciosos 6 x 2 no Santos. Ele fez o
último gol, o sexto, um gol antológico, por cobertura, inesquecível, eu vi, eu
estava lá, por mercê de Deus.
Raí brilhou intensamente no
futebol francês, onde foi jogar no Paris Saint Germain. Com sua nobreza, com
sua educação, com sua classe, Raí parecia que tinha nascido em Paris. O Paris
Saint Germain não ganhava havia muitos anos, Raí levou o time ao título, foi
uma festa secular, o povo bebeu champagne sob o Arco do Triunfo, dizem que
Victor Hugo sorriu em seu caixão dourado.
Raí virou celebridade na
Europa. Todos se curvaram diante de sua nobreza. Raí tinha um jeito de barão,
Paris e as belas parisienses o seguraram nos palácios de Saint Germain de Prés
até 1998, quando o coração fê-lo dobrar a página européia para disputar a
última batalha em campos brasileiros, com a camisa que o consagrara, a
sacrossanta camisa das três cores.
Estavam em jogo as finais do
Campeonato Paulista de 1.998.
São Paulo e Corinthians
iriam fazer uma “melhor de três” para decidir quem seria o campeão.
Raí, diante de 90.000
pessoas, repatriado pelo São Paulo, deu aos são-paulinos uma alegria suprema.
Os corintianos o julgavam
acabado, diziam-se campeões. Mas Raí destruiu o Corinthians, voltou ao Morumbi
como se estivesse sendo chamado para uma guerra, parecia Napoleão, comandando o
exército Tricolor.
Foi dele o primeiro gol, ele
participou do segundo, Denílson também brilhou, o São Paulo fez 3x1 e sagrou-se
campeão. A cidade nunca mais vai ser tão são-paulina como foi naquele 10 de
maio de 1998.
Raí, nos ombros do povo,
aquele Adônis para as mulheres, aquele anjo vingador para os homens, encerrava
a carreira, vestindo o manto maravilhoso que foi de Ruy, de Bauer, de Noronha,
de Rocha e de tantos outros. Era o fim de uma lenda dentro das quatro linhas.
Ora, o que mais dizer sobre
esse craque, iguais?
Raí foi um jogador de todos
os tempos.
Volúpia, arranque, força,
liderança, inteligência.
Raí era um moderador do São
Paulo. Se Raí jogasse bem o São Paulo ganhava, se Raí jogasse mal o São Paulo
perdia.
Raí quase sempre jogava bem.
Então o São Paulo sempre ganhava!
Raí iniciou para os
são-paulinos uma era de grande popularização nos tempos modernos. A torcida
feminina do São Paulo cresceu assustadoramente. Ver Raí, para as mulheres, era
tudo.
Raí, com seu comportamento
inigualável, evocou, nos tempos modernos, o São Paulo mais antigo, o São Paulo
da cepa, o São Paulo oriundo do Paulistano, o São Paulo dos nobres. Raí é como
Fried, é como Leônidas, é uma marca do Mais Querido.
Eis um nome do qual jamais
me esquecerei. Tenho certeza de que os adversários também jamais se esquecerão
de ti, Raí, “O terror do Morumbi.
A torcida do São Paulo FC,
claro, jamais te olvidará!
Ave, Raí e Paz, meus iguais.
Antonio Carlos Sandoval
Catta-Preta é advogado e são-paulino.
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Antonio Carlos Sandoval
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1 comentário:
Como pode toda essa poesia ser verdade? Simples, Raí era poético dentro de campo, o último camisa 10 do nosso futebol. Raí é elo de ligação entre o futebol romântico e o moderno, hoje se fala em futebol total, mas só Raí foi um jogador TOTAL. Completo, o maior de todos! Nunca me emocionei tanto ao ler um texto sobre futebol, nunca nada me fez sentir tanta saudade. Obrigado Dr. Catta Preta Obrigado RAÍ
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