Sou apaixonado pelo futebol. Pelo futebol bem jogado, pelo futebol arte, pelo futebol de excelência, pelo futebol poético.
Já vi muitos craques, vi os donos da bola, vi muitos daqueles que os deuses escolheram para brilhar pela eternidade futebolística. Detesto e repudio a ruindade, não me calo. Quando me deparo com a mediocridade, com os jogadores comuns, empunho minhas armas, quem se contenta com pouco merece pouco. O aplauso para o mediano é incentivo para a inutilidade. Ás vezes o talento aparece, é raro, raríssimo, então, quando isso ocorre, adeus mesmice, fico atônito, poético!
Hoje, no futebol, se fala em alas, em meio campo povoado. O mundo resolveu fabricar volantes. Ninguém quer perder. Os volantes são alas, são laterais, são armadores, são o pulmão e o coração dos times. Quanta bobagem, querem acabar com o verdadeiro futebol!
Houve um tempo em que uma partida de futebol se prestava a seu objetivo original, cada qual dos adversários queria ganhar o jogo. Então os times entravam em campo para vencer, vencia o melhor.
No auge do futebol arte, do futebol objetivo, jogava-se no sistema 2/3/5.
No auge do futebol arte, do futebol objetivo, jogava-se no sistema 2/3/5.
Dois zagueiros cuidavam da área, três médios ocupavam o meio campo e cinco eram os atacantes; dois pontas abertos, dois meias para auxiliar o ataque (um mais recuado e outro mais agressivo) e o centro-avante, que era o indigesto inquilino da área adversária.
Falava-se então, em linha média. Os jogadores que povoavam a linha média, a intermediária, o meio campo, eram aqueles a quem se atribuía o dever de resolver o jogo. Os médios pensavam. Eram os idealizadores de qualquer time. A linha média paradigma do futebol brasileiro nos anos 40 era do São Paulo FC e era formada por Ruy, Bauer e Noronha. Ruy, Bauer e Noronha viraram poesia sem rima, Ruy, Bauer e Noronha viraram lenda, sinônimo de perfeição.
Nos campos de futebol de várzea das ruas do bairro da Bela Vista, em São Paulo, muito menino, com onze, doze anos, no final dos anos 30, surgiu um menino sarará, filho de pai suíço com mãe brasileira negra.
Era um menino que enchia os olhos. Zé Carlos, como era chamado pela família e pelos amigos, era simplesmente demais. Ele era um pinguelão, era alto, longilíneo, era atrevido, elegante, se impunha aos mais velhos quando o negócio era jogar bola. Havia gente que ia aos campos daquelas várzeas paulistanas exclusivamente para ver Zé Carlos comandar os veteranos com a sua classe, com a sua maturidade precoce. Dele se dizia que era um menino velho, que já nascera pronto para ensinar futebol!
Alguém recomendou a um dirigente do emergente São Paulo FC que fosse ver o prodígio. Imediatamente Zé Carlos foi levado ao Canindé para treinar. Nascia naquele dia uma carreira de ouro.
Zé Carlos encantou a diretoria e o técnico do São Paulo. No primeiro treino, entre os infantis, ele deu um show especial. Parecia o dono do time. Zé Carlos não tinha idade para vestir a camisa titular, era preciso esperar o tempo passar para que finalmente o mundo conhecesse o gênio. O São Paulo guardou seu segredo, esperou o menino crescer. Os diretores e os mais chegados ficaram anos extasiados vendo Zé Carlos treinar até que no dia 01/11/45 o puseram em campo. O São Paulo de Leônidas, o Diamante Negro, era a sensação da cidade e do Brasil. O Bem Amado havia conquistado pela vez primeira um título, o título paulista de 1943, a moeda caíra em pé, o São Paulo era o frenesi dos paulistanos.
Zé Carlos estreou contra o poderoso Botafogo do RJ em um amistoso no Pacaembu em uma noite em que a vários meninos foi dada a chance de aparecer. A partida terminou 2×2 e ele foi aplaudido de pé pela torcida, que se encantou com seu jeito. Era calmo, mantinha a cabeça erguida, dono de toques incríveis tinha inata liderança, era um achado!
A direção são-paulina ficou indecisa. Fixar aquele garoto de vinte anos no lugar de Zarzur, o médio do time, era uma temeridade. A promessa foi recolhida. Outros amistosos vieram, Zé Carlos ficou fora. Mas nos treinos não havia como não se entusiasmar, o rapaz já virara o cérebro do time. Ele chamava o jogo para si, os titulares penavam para ganhar coletivos, Zé Carlos, com sua classe, roubava a cena.
Então, quase que por aclamação de jogadores e torcedores, ele voltou a jogar em outro amistoso. No mesmo Pacaembu, se enfrentariam São Paulo x Fluminense, outro dos muitos amistosos que precediam os campeonatos estaduais.
O Fluminense fez 1×0, o São Paulo empatou e virou. O Fluminense deixou tudo igual e parecia que o jogo caminhava para um final de compadres. Então, Zé Carlos apanhou uma bola na intermediária, saiu com ela em linha reta, driblando quem aparecesse pela frente e ao chegar à marca do pênalti enfiou uma bomba para decretar a vitória do São Paulo por 3×2. O Pacaembu foi ao delírio, nunca mais aquele menino sairia do time titular.
José Carlos Bauer iria formar a maior linha média da história do futebol brasileiro, ao lado de Ruy e Noronha. Na estréia do Campeonato Paulista de 1945, o São Paulo estava pronto. Gijo, Piolin e Virgílio, Ruy, Bauer e Noronha, Luizinho, Sastre, Leônidas, Remo e Pardal iriam fazer chover.
O garoto Zé Carlos passou a ser chamado pelo sobrenome, Bauer, Bauer soava melhor, impunha respeito.
Desde esse abril de 1945, o futebol teria um novo astro para a eternidade.
Desde esse abril de 1945, o futebol teria um novo astro para a eternidade.
Bauer era completo. Ele dominava o meio-campo com seus requintes de classe. Às vezes resolvia correr com a bola do meio para uma das alas. Ia driblando um, dois, três, quatro, quando se davam conta ele estava lá, em uma das pontas ou no bico direito ou esquerdo da área, para levantar a bola milimetricamente, na cabeça do maestro Sastre ou do homem-borracha, Leônidas: gol do São Paulo!
Bauer se transformaria numa legenda da história do futebol. Dizem que Bauer não dava um passe, ele levava a pelota a domicílio até o pé do companheiro a quem resolvia endereçar a bola.
Craque elegante, alto, forte, ninguém no meio campo se comparava a ele nos anos 40.
Conta-se que dos pés de Bauer a bola saía perfumada. Dona bola se rendia àquele formidável craque como se estivesse hipnotizada. Bauer viveu um tempo mágico da história do São Paulo FC. Em 1945 Bauer já conquistou o título paulista, muitos dizem que ele foi o maior jogador do time naquele ano.
No bi-campeonato paulista do ano seguinte, em 46, o São Paulo FC deu um vareio na concorrência; venceu o título espetacularmente e invicto. A final foi contra o Palmeiras. O Pacaembu viveu um dos seus dias mais gloriosos. O jogo, inebriante, com um público fantástico, estava empatado em 0×0 até o finalzinho do 2º tempo, o São Paulo jogava com um a menos, Renganeschi, com distensão muscular, fazia número na ponta-esquerda. Essa expressão “fazer número”, tinha sentido. Não havia substituição, se um jogador se contundisse, ou saía ou se mantinha em campo, parado numa das pontas para completar o número de jogadores no gramado. Foi assim naquela ocasião com “Renga”, os são-paulinos chamavam o raçudo zagueiro de área argentino Renganeschi de “Renga”. Ele se contundira e mal podia andar em campo.
Quando se pensava que o jogo iria terminar empatado eis que Bauer dominou uma bola no meio-campo e arrancou com ela para a direita, driblando progressivamente uma porção de adversários até chegar ao bico da área. Dalí, Bauer ergueu a cabeça, como era de costume e com a elegância de um lorde cruzou. O legendário goleiro palmeirense Oberdan tentou deter a bola, engalfinhou-se no alto com Luizinho, o ponta-direita são-paulino, a bola passou e foi cair no bico da pequena área, lado esquerdo, nos pés do contundido Renganeschi que a empurrou para a rede. Os palmeirenses esbravejaram, queriam falta no gigante Oberdan, houve expulsões, brigas e a partida terminou. O São Paulo era consagrado campeão invicto de 1946!
Depois do jogo a torcida tricolor invadiu o campo, Bauer foi carregado em triunfo, o estádio inteiro gritava o nome dele, foi algo jamais visto.
Bauer brilharia intensamente, de 1945, quando estreou, até 1954 quando, já veterano para o futebol da época, despediu-se do São Paulo. Vencedor, Bauer era sinônimo de títulos: Venceu o campeonato paulista, principal competição que o clube disputava na época, em 45/46/48/49/53. Virou mito.
Bauer poderia ter sido aplaudido no mundo inteiro. O mundo teria agradecido. O destino entretanto não permitiu que as multidões o conhecessem. Nos anos 40 não houve copas do mundo, a ignorância dos homens que faziam guerra não deixou que ele, e outros tantos gênios brasileiros da bola, se universalizassem.
Em 50, a copa no Brasil se encarregou de mostrar o futebol arte que os brasileiros vinham praticando. O Brasil perdeu a copa fatalísticamente, não quero voltar aqui às minúcias daquele episódio de amarguras em que se transformou o jogo final contra o Uruguai.
O Brasil encantou o mundo em 1950, apesar da dolorosa derrota. Nosso centro-médio era Bauer. Bauer desfilou sua elegância, sua classe e sua liderança naquela copa. Jogou, como sempre, de maneira incomparável.
Apesar da derrota fatídica, Bauer, acatado unanimemente, foi chamado pela imprensa internacional de “O monstro do Maracanã”. Sua performance foi impecável.
De meu saudoso pai são-paulino, ouvi que Bauer era a própria encarnação do São Paulo FC nos anos 40 e começo dos anos 50. Bauer foi e é meu ídolo, o nome de Bauer soava e soa sagrado para mim.
Numa dessas festas de confraternização que o São Paulo fazia reunindo seus ex-craques eu estive a poucos metros de José Carlos Bauer. Não tive no entanto coragem de me aproximar do ídolo mitológico. Preferi, por razões que até hoje desconheço, ficar à distância. Acho que talvez tenha sido pela concepção que um dia estabeleci no sentido de que não se toca nos ídolos. Ídolos são de ouro, são intangíveis, intocáveis, insondáveis. Deve-se cultuar de longe os ídolos.
Ver Bauer foi o bastante. A figura altiva daquele senhor elegante, de postura ereta, de cabelos grisalhos e aura nobre me remeteu ao passado e eu, comigo mesmo, o vi em campo, como um deus. Jamais me esquecerei daquele momento.
Bauer morreria no ano seguinte. Mas seus feitos são eternos.
O passar dos anos não apagará a história dourada que o “Monstro do Maracanã” escreveu com letras inesquecíveis.
O São Paulo FC deve muito a esse luminoso ícone da categoria, da classe, da nobreza no trato com a bola.
Bauer é um nome para sempre. Um nome imortal.
Ave, Bauer!
Paz, meus iguais.
Antonio Carlos Sandoval Catta-Preta é advogado e são-paulino
catta_preta on twitter
antoniocattapreta@yahoo.com.br
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